Sono, trabalho, fome, sono, trabalho, fome…
Em meio aos meus atuais obstáculos fisiológicos e
profissionais, tento escrever um relato após uma semana inteirinha de aventura
no Ecomotion Pró – Costa do Descobrimento. Entre um bocejo e outro e um milhão
de pendências e outra, tento recordar cada passo das centenas de quilômetros
que percorremos no extremo Sul baiano.
frente: Juliana, Ricardo, Diogo, Lilian e Gustavo. atrás:
André e Thiago
Lembro da brincadeira ter começado meses antes, quando fui
convocada para completar o time da Enigma Selva Aventura, até então formada
apenas pela parte masculina da equipe: Diogo Rehder, Gustavo Foronda e Ricardo
da Ponte, ou para simplificar com o vício paulistano dos apelidos simplesmente
Di, Gu e Ri. Equipamento obrigatório contratado (euzinha), períodos longos de
treinos, alguns imprevistos pelo caminho (todos superados, claro!) e enfim a
equipe estava formada.
Com tudo pronto, era hora de embarcar na aventura!
Embarcar neste caso no sentido literal de ingressar numa
embarcação. A nossa, aliás, era uma escuna, na qual demoramos um pouco para
entrar e acabamos perdendo as poucas opções de colchonetes disponíveis. Dos
males o menor, já que pelo menos conseguimos espaço suficiente no chão para
deitarmos sob uma parte coberta por lona e sobre um pedaço de EVA emprestado
pela nossa equipe co-irmã Ekos. Outras equipes, no entanto, infelizmente
ficaram na popa ou proa totalmente descobertos, inclusive alguns apenas
sentados, sem qualquer chance de esticar as pernas. Passamos a noite em
alto-mar, inicialmente iluminados apenas pelas luzes da Lua e das estrelas, que
pareciam nos dar boas vindas. O sono leve, provocado pelo desconforto, acabou
interrompido quando a chuva da madrugada começou a cair, chuva esta que se
repetiria todas as noites seguintes.


Com o dia amanhecendo, fomos despertados por outro barco,
que trazia uma comitiva de membros da imprensa e da organização, prontos para
dar a largada. O organizador avisava “Equipes, estejam prontas rapidamente para
assumirem seus caiaques”. Ao mesmo tempo em que se alinhavam para descer da
escuna e entrar nos caiaques, todos comiam e bebiam o desejum que cada um
levara para a ocasião. Mal lembro da nossa refeição, talvez algumas bisnagas
recheadas com não sei o quê, Gatorade (aliás, a bebida foi gentilmente cedida
fartamente pelo fabricante para nossa equipe, junto com muitos energéticos
Fusion) e água.
Opa, nossa vez de entrar no caiaque. Descemos o Gu e eu
primeiro e depois a segunda dupla. Esta era nossa formação para a canoagem.
Largada

Com todas as equipes a postos num banco de areia em algum
lugar do oceano Atlântico, ficamos fora do barco e em pé à espera do
helicóptero de filmagem e do tiro de largada. As imagens foram devidamente
captadas, porém o revólver luminoso falhou uma, duas, três, quatro vezes, até
que alguma equipe resolveu iniciar a prova e todas a seguiram sem que a largada
oficial e cinematográfica acontecesse.
Alguns caiaques, embora de plástico rígido, simplesmente
estavam furados, prejudicando algumas equipes, inclusive a Selva Kailash, nossa
outra equipe co-irmã, a mais forte e com chances de melhor colocação das três
equipes Selva.
Remamos, remamos e remamos, por cerca de 15 quilômetros,
entre mar e rio, até chegarmos à Prado, município que parece disputar com Porto
Seguro pelo direito de descoberta oficial do Brasil pelos portugueses.
Sem entrar em méritos históricos de colonização, saímos de
Prado pedalando após uma rápida transição com nossos queridos apoios Thiago,
André e Juliana. Eles seriam nossos anjos-da-guarda pelos dias seguintes, sendo
responsáveis tanto pelo transporte dos equipamentos, alimentação e cuidados
médicos como principalmente pelo incentivo moral e reforço nos ânimos da equipe
em momentos difíceis.
Bike
Escaldante
O calor já estava insuportável no trecho de bike. Foram
cerca de 34 km com algumas subidas, tudo muito sofrido por conta do calor e
areia que dificultavam nossa progressão. Um pouco abatidos e tentando
administrar o esforço, recebemos uma super injeção de ânimo do Caco e da Selva,
que tentavam recuperar a queda para a última colocação provocada pelo caiaque
furado.
Já em Cumuruxatiba, gritávamos “ENIGMA! ENIGMA! ENIGMA!
ENIGMA!” e nada. “Onde estão os apoios? ENIGMA! ENIGMA! ENIGMA!” e nada. Apesar
da consciência de que a prova estava apenas começando, a adrenalina era tanta
que agíamos como se estivéssemos numa prova curta. Queríamos trocar de
modalidade, queríamos entrar logo no trekking seguinte de 80 km, queríamos
aproveitar ao máximo a luz do dia para navegar, mesmo que isso custasse um
esforço físico a mais. E assim fizemos, logo depois finalmente encontrarmos
nossa base de apoio, onde nos alimentamos, cuidamos dos pés e carregamos as mochilas
o quanto pudemos com comida e água, suficientes para pelo menos 20 horas de
caminhada.
Saímos para o trekking com a Ekos debaixo de um Sol
escaldante, a ponto de fazer o Diogo vomitar o pouco que tinha conseguido
ingerir na transição. Seguimos praticamente juntos até uma bifurcação, onde
cada equipe escolheu uma entrada. A nossa, nos levaria à praia, por onde a maré
baixa nos permitiu impor um ritmo razoável. As falésias e a maré alta teriam
nos obrigado optar por outro caminho, mais longo e que exigiria mais atenção na
navegação.
Seguimos em frente. O ponto de passagem seguinte, seria em
Corumbau num PC-V (posto de controle virtual), em que precisaríamos responder a
pergunta “Qual a cor da porta do farol?”. Ansiosos pela resposta, repassamos a
questão para moradores locais, que prontamente nos responderam: “VERDE!”.
Apesar da resposta já conhecida e de normalmente PC-V não terem fiscais da
organização, seguimos nosso destino até o farol. Lá confirmamos a resposta,
fotografamos o farol e cumprimentamos surpresos o fiscal da organização que
checava a passagem dos quatro elementos da equipe pelo local.
Com o retorno por cerca de 4 km pelo mesmo caminho da ida,
encontramos algumas equipes, conversamos e dividimos o ritmo com a
Papaventuras/Família Extrema, cumprimentamos e seguimos nosso rumo para uma
trilha com cara de duna já com o dia caindo. Nos últimos raios de luz, pegamos
nossas lanternas, nos alimentamos e cuidamos dos pés e das bolhas que começavam
a aparecer. O longo trecho plano que incentivava o ritmo mais forte, a areia e
os rios que não deixavam os pés secarem se transformaram nos vilões que a
partir dali começavam a definir o quão sofrida seria a prova dali para frente.
Noite adentro, paramos mais algumas vezes para cuidar dos
pés, cruzamos com algumas equipes e com algumas figuras inusitadas que surgiam
no meio do nada. O caminho aparentemente pouco frequentado nos fez encontrar
primeiro com duas pessoas em uma moto, que carregavam no pescoço colares
gigantes de miçangas vermelhas, como se estivessem a caminho de um trabalho
importante de umbanda ou qualquer ramo semelhante do espiritismo. Logo em
seguida outros dois com seus enormes facões ou peixeiras e para fechar a noite
outros dois com espingarda no ombro e munições suficientes para uma caçada
profissional.

Cumprimentamos todos e continuamos nosso caminho. Primeira noite e pouco
cansaço nos permitiram uma navegação impecável. Passamos pelo segundo PC-V,
contamos os degraus da igreja de Boca da Mata, fotografamos e aproveitamos para
comprar um miojo grudento no único boteco que insistia em recepcionar aquele
bando de gente estranha que passara a madrugada toda por ali. Estranho também
notar a presença da equipe Oskalunga, forte pré-candidata ao pódio, mas que se
amontoava no chão do bar, tentando dormir enquanto as equipes de passagem
falavam sem parar. Dormir na primeira noite e ainda sendo uma equipe de ponta
indicava que estavam realmente com problemas.

Seguimos até atingirmos a base do Monte Pascoal já no crepúsculo. Subimos até o
cume, cruzando com várias equipes que tentavam dividir a estreita, íngreme e
escorregadia trilha. Assinamos o PC e começamos a descida, cheia de obstáculos,
com direito a um assustador escorregão do Gu morro abaixo e um ataque de
formigas de presente pra mim. Checagem de membros no lugar, todos inteiros,
bora descer pois os apoios estariam a poucos quilômetros dali.
Recepção
Após uma longa noite chuvosa, lamacenta e literalmente
alucinante – já que o Ri e eu avistamos ao mesmo tempo uma fábrica com silos e
tubos gigantes no meio do nada – finalmente reencontramos nossos apoios. A
recepção foi digna de famosos, já que nossa chegada acontecera ao mesmo tempo
que toda a equipe de imprensa desembarcava do carro da organização. Muitos
flashs e muitas entrevistas para redes de televisão e rádio. O Diogo estava
realizado! Apesar de não responder nada do que era perguntado, ele
provavelmente estava se sentindo como vencedor de um BBB. Uma figura!!!
Nossa transição foi um verdadeiro choque. Nossos
equipamentos, alimentos industrializados e roupas tecnológicas estavam
devidamente distribuídos na minúscula sala de uma casa de pau a pique de
propriedade de uma família indígena, praticamente aos pés do Monte Pascoal. Com
a chuva constante, os apoios foram convidados a usar o espaço, ocupados por nós
posteriormente e onde pudemos rapidamente conhecer a dura realidade das
crianças da casa que olhavam curiosos nossa rápida transição.
Lama maldita
Agradecemos a hospitalidade e saímos pedalando debaixo de uma forte chuva,
porém felizes com a possibilidade de descansarmos os pés do duro trekking
anterior. No entanto, a alegria durou apenas pouquíssimos quilômetros, até que
a lama argilosa tomou conta de todo o caminho. Como nossas magrelas têm a
suspensão muito próxima ao pneu, era praticamente impossível empurrar. A cada
giro da roda era uma parada para tentar tirar parte da lama com as mãos.
No caminho, encontramos um pequeno lago. “Ufa! vamos lavar
as magrelas”. O Gu lavou a dele e logo em seguida foi minha vez. Tirei a
mochila pra descansar as costas e comecei a esfregar a argila grudenta.
Enquanto eles seguiam, tentei tirar o máximo da lama, o que teoricamente
deixaria a bike mais leve para carregar. A Bárbara, da Oskalunga, passava nessa
hora, então aproveitei para perguntar se tinha alguma dica para aliviar nosso
esforço. Ela respondeu: “É isso mesmo, tem que tentar limpar”.
Triste pela fórmula nada mágica, coloquei a bike nas
costas e segui para tentar encontrar os meninos. Conseguimos pedalar alguns
metros, bike nas costas de novo e uma ladeira imensa à frente. Lá no topo, já
exausta, desci a bike dos braços e senti… Um gelo percorreu minha espinha, uma
raiva subia à cabeça quando virei e falei quase engasgada: “PQP, esqueci minha
mochila láááá atrás e estou voltando pra buscar”.

Ué, a mochila sumiu!!!!
Acho que os meninos queriam me fuzilar quando trocaram
olhares. Costumo ser muito avoada mesmo, mas sei que é praticamente imperdoável
ter que voltar um trecho tão duro, com as bicicletas com quilos a mais de peso
da lama. Fora isso, a argila chegava a arrancar as sapatilhas dos nossos pés já
tão sofridos com bolhas.
Dei apenas alguns passos voltando para a mochila, quando o
Ri prontamente falou: “Eu vou buscar. Fica aí!”. Quase chorei de gratidão, pena
e remorso pelo meu erro.
Continuamos nosso martírio por todo o trecho, desviando
apenas alguns metros por um pasto. Calculo que dos cerca de 33km do trecho,
pelo menos 20km tenhamos carregado as magrelas/obesas nas costas. Uma tortura
para os pés, corpo e mente.
Ricardo se esbaldando no efluente de uma fazenda
Exaustos, subimos uma ladeira quase colados na Oskalunga novamente. Conversei novamente
com a Bárbara, que parecia triste por estarem atrás. Em poucas palavras ela
resumiu: “Estamos fora da prova. Agora vamos só passear”.
Paramos os oito num bar que não vendia nada além de cerveja. O gentil senhor
nos cedeu uma garrafa d’água, que dividimos entre as duas equipes. Ao passar a
garrafa para o capitão da Oskalunga, Lico, o Diogo ainda brincou: “Essa água é
que vai fazer vocês ganharem”. Apenas um sorriso amarelo em resposta, então
seguimos nosso caminho enquanto eles ainda ficaram aproveitando a escassa
sombra do lugar.
Transição fantástica em Itamaraju, com direito a banho na
praça e almoço no coreto. Mochilas reabastecidas, bastões em punho e seguimos
para mais um trecho da prova que já parecia um duathlon. Nesse ponto soubemos
que a organização havia cortado alguns trechos de remo e bike da prova, o que
significava mais uma vez que não teríamos descanso para os pés tão cêdo.
Caminhamos já lentos pelos pés judiados. Alguns
quilômetros de asfalto até a entrada da trilha e uma pausa para fotos mais uma
vez. Fomos ultrapassados por algumas equipes, e de novo pela Oskalunga.
Entramos na trilha de subida para um ponto denominado lajeado, mas já cansados
acabamos errando uma entrada. Subimos, subimos e subimos até que a trilha
sumiu. Descemos tudo de novo para recomeçar o caminho, cruzando com muitas
equipes – de novo com os quase desistentes que já desciam do PC – e acabamos
acompanhando os que subiam até o topo da trilha certa. Apesar da noite já
caída, a vista era linda. O céu iluminado pela Lua crescente nos permitia ver
ao longe as cidades ou vilas que circundavam o pico da antena em que estávamos.
Na volta lenta pelas bolhas doídas, encontramos mais uma
vez e pela última vez a Ekos. Uma alegria imensa vê-los sorrindo na trilha,
apesar de também estarem cheios de bolhas e com muita dor. Nos abraçamos,
sorrimos e cada um seguiu sua rota novamente.
O cansaço da segunda noite já quase nos dominava. Tentamos por mais de uma hora tentar achar a trilha que nos levaria ao próximo PC, mas em vão. Sobe, desce, sobe e desce e nada. Subimos de novo, até uma pequena casa, onde deitamos, dormimos cerca de uma hora e pela primeira vez desde a largada dois dias antes.
Acordamos revigorados, com o Diogo já sabendo onde era a
entrada correta da trilha. Partimos para quilômetros mais – na chuva, é claro!-
, lentos, porém constantes. Caminhamos a noite toda até o PC seguinte numa
pequena vila, onde finalmente reencontraríamos os apoios e as magrelas
renovadas. Para nossa tristeza, mais uma vez a prova tinha sido alterada. No
lugar da alegria de trocar de modalidade, a dura notícia de que tínhamos mais
sete quilômetros de trekking até os carros. A organização julgara que este
trecho da estrada não estava em condições para a passagem dos carros. Na nossa
lentidão provocada pelas dores pudemos conhecer cada milímetro do trecho e
concluímos, nas duas horas que levamos para percorrer os sete quilômetros
extras, que qualquer carro poderia sim passar por aquela estrada. Enfim, manda
quem pode.
Finalmente
um trecho de pedal de verdade
Tentamos fazer uma transição rápida, pois o dia seria
decisivo. Além dos 64km de bike – incluindo os 7 do bônus anterior – teríamos
na sequência mais um trekking de uns 30km. Deveríamos percorrer tudo até a meia
noite, horário de corte da prova.
Chegamos logo pela manhã na transição. Tentamos fazer uma
troca rápida de modalidade, na esperança de aproveitarmos bem o dia. Não
cuidamos dos pés, mal nos alimentamos e logo saímos pedalando.
As sapatilhas quase não entravam mais nos pés. Abri os
cadarços o quanto pude, gemi para encaixar cada pé e subi na bike decidida a
descer apenas no fim dos 64km.
O trecho de muitos desníveis somado ao forte calor
dificultou um pouco a progressão. Para ajudar – ou piorar – um descuido na
navegação fez com que descêssemos errado uma ladeira imensa. Lááááá embaixo o
Gu pergunta para uma moradora: “Aqui é São Paulinho?”. Resposta: “Não moço, São
Paulinho é subindo essa ladeira aí”. ‘Essa ladeira aí’ era por acaso a mesma
que tínhamos descido a toda velocidade de tão íngreme que era. Respira fundo,
olha um para o outro, ninguém solta nenhum comentário e bora subir rumo à São
Paulinho, que ficava a mais de 15 km dali.
Calor imenso, muitas subidas e descidas até que finalmente
chegamos à receptiva São Paulinho. Embora fosse apenas um ponto de passagem,
fomos recebidos com festa pela criançada local e pela dona do mercadinho que
nos vendeu uma Coca e que fez questão de não cobrar a água gelada.
De volta ao pedal escaldante, tivemos que parar em alguns
momentos, o que acontecia com muita dificuldade já que não conseguíamos
desclipar os pés dos pedais. Em alguns momentos precisei apoiar o pé esquerdo
no chão, deitar a bike e com as mãos desclipar o pé direito do pedal. Dor,
muita dor. Apesar das paradas improvisadas para baixar a temperatura,
conseguimos – nos obrigamos – a pedalar todas as subidas apenas para não ter
que empurrar as bikes e forçar ainda mais os pés.
Alguns quilômetros depois avistamos a Vila União. A
empolgação foi tanta que eu simplesmente desliguei. Numa descida, por milésimos
de segundos apaguei do mundo e freei apenas com a mão esquerda. A freada com o
freio da frente me lançou ao chão (Luli, a Ferrari saiu ilesa!). Susto, alguns
ralados no braço e joelho, porém nada demais.
Na chegada à vila, na sede e com o radiador fritando,
Dioguito bateu numa casa e quase no desespero ele fala: “Moça, pelo amor de
Deus, me arruma uma água gelada?”. A resposta dela o fez engolir a seco o que
já não tinha mais para engolir: “Ôh moço, me desculpe mas não tenho geladeira
não!”
Para o alívio dele – nosso -, ela prontamente emendou:
“Pera aí, que vou ver se arrumo algo”. Em poucos minutos ela retornou com uma
PET de 2 litros congelada de água e um refrigerante gelado, que tinha
conseguido gentilmente com uma vizinha. Bebemos, dividindo com a equipe dos
animados Grilos.
Muitas subidas depois, chegamos à mais uma transição em
Cajuíta.
Casa
de Daniel
Fizemos uma transição bem lenta, pois precisávamos tratar
os pés o suficiente para aguentar os mais de 30km de trekking seguintes, com
muito desnível. Teríamos algumas serras para atravessar, o que com certeza
seria muito difícil dada as condições dos pés.
Pizza saborosa e recepção calorosa dos apoios, moradores e
principalmente da crianças da pequena cidade. Alegria imensa ao recebermos o
carinho da molecada. Um deles, inclusive nos serviu de geladinho – aquele
sorvetinho de saquinho que lembra infância -. Tudo de bom! As enfermeiras da
organização cuidaram dos nossos pés e, por volta das 16h30 (acho que da
quarta-feira), com um belo incentivo de todos, continuamos nosso caminho.
Como já era esperado, uma dura subida até a trilha. Nossa
progressão já era muito mais lenta que o trekking anterior. Levamos muito tempo
até o PC seguinte e o cansaço, de novo, já queria atrapalhar a navegação.
Já estava de noite quando os meninos pediram para
descansar. Mas com a proximidade do horário de corte, discordei e pedi para
tentarmos mais um pouco. Lembro de ter dito algo do tipo: “Temos que tentar!
Não podemos parar agora e depois ficarmos com a sensação de não termos tentado.
Mesmo que a gente não consiga chegar antes do corte, pelo menos teremos
tentado”. Acho que foi suficiente, pois todos concordaram. Paramos apenas para
uma rápida refeição, um macarrão com azeite e orégano, que estava delicioso.
Atravessamos lentamente mais um morro até entrarmos numa
estreita trilha, onde encontramos mais uma vez com a Grilos e sua animada
capitã Cal, esposa do Zolino, que aliás há tempos tinha parado a prova. Em meio
a brincadeiras do tipo: “E aí Cal, como é ficar na frente do maridão?!?!”, os
meninos debatiam a navegação com a também navegadora. Seguimos juntos até uma
pequena vila, que para nossa alegria momentânea seria o PC-V (Qual o número do
registro de energia da placa solar da casa de Daniel, que fica próximo a uma
antena parabólica?). Vila nova, vários postes de energia, nada de parabólica e
muito menos de placa de energia solar. Com tantos postes e fios, como é que
encontraríamos uma placa de energia solar, aquela hora da noite e numa vila que
parecia abandonada?
Depois de várias idas e vindas, resolvemos parar para
dormir, enquanto a Grilos continuava sua incansável busca. Abrimos nossos
cobertores de emergência e dividimos um pequeno espaço, porém coberto, de uma
casa trancada a cadeado. Chovia muito, enquanto a Cal nos avisava quais
caminhos não seguir. De tempos em tempos ela voltava com notícias do tipo:
“Pessoal, não pegue a trilha tal, porque não vai dar em nada”. Sonolentos,
apenas respondíamos: “Huhumm!!”
Cerca de uma hora depois, levantamos, calçamos duramente
os tênis, vestimos as mochilas e saímos rumo a… “Pra onde temos que ir?!”. Um
olhou para o outro e unânimes decidimos dormir até o amanhecer. Faltava pouco
tempo para o dia clarear, então voltamos para o conforto do chão de cimento,
seco e coberto.
Acordamos com o Di gritando “é o Daniel, é o Daniel…”
Sonolenta, só pensei: ‘mas o Dani nem veio pra prova’, lembrando de um amigo da
aventura. Enquanto isso, o Di gritava para o Daniel – o da casa onde seria o
PC-V que procuramos a noite toda: “Daniel meu filho, onde é tua casa?”. Nem
imagino o que possa ter passado pela cabeça do cidadão, pela minha só uma
sensação de alívio e frustração quando ele apontou para um lado disse: “É só seguir
reto!”.
Notei a Grilos se espremendo numa pequena cobertura, que
mal dava para fugir da chuva. Coitados! Saímos juntos para uma nova tentativa,
desta vez pelo caminho correto. Nossa lenta progressão, fez com que perdêssemos
a companhia tão alegre da equipe. Além do mais, estávamos todos cabisbaixos com
o corte certo. Nos separamos alguns metros, todos à vista, porém isolados cada
um com seus pensamentos. Em meio ao caminho de lama, o dia ainda clareava
quando me bateu uma imensa tristeza ao pensar que uma das minhas missões na
prova não seria cumprida. Levar aqueles três malucos até a linha de chegada era
uma missão pessoal difícil, porém possível se não fossem os dolorosos
imprevistos que surgiram ao longo dos duros trechos que já tínhamos percorrido.

No entanto, o coração apertado foi se libertando à medida que o Sol tentava romper as nuvens ainda carregadas e que insistiam em nos acompanhar todas as noites. Cada raio de Sol que batia na imensidão rochosa que nos cercava era como um consolo, como se alguém pudesse mandar um recado em alto e bom som: “Ei, dá uma olhada à sua volta. Quantas pessoas no mundo tiveram o privilégio de estar aqui? Quantas pessoas no mundo puderam compartilhar com amigos tão especiais momentos como este? Quantas pessoas no mundo tiveram a coragem de chegar até aqui?”. Poucas, muito poucas!

Com a resposta engasgada na garganta, finalmente
encontramos a casa de Daniel, que aliás, não tinha placa de energia solar.
Apenas alguns metros para frente é que encontramos a tal placa, com parabólica
e tudo. Na dúvida, anotamos e fotografamos ambos os números de registro.
Antes de começar a subida de travessia da serra seguinte, o morador da casa da placa gentilmente nos doou algumas bananas. Nosso café da manhã agora estava completo. Subimos lentamente, porém constantes, parando algumas vezes apenas para o Ri recuperar ou pelo menos tentar aliviar os pés.
Um tempo depois chegamos ao topo, onde havia uma casa de pau a pique, com árvores frutíferas em volta. O Gu quase acabou com as mexericas de um pé, praticamente só sobrando o pé de limão para o Diogo degustar. A On the Rocks nos passou enquanto esperávamos o Ri chegar ao topo. Passei alguns gomos da mexerica para o Maurinho, ele sorriu e logo seguiu o caminho.
O
martírio
Com tanta dor, subir a serra pela trilha fechada, técnica,
molhada e lameada já não tinha sido fácil para ninguém, muito menos para o Ri,
cujos pés estavam horríveis. Descer em terreno semelhante já indicava o quanto
seria sofrido concluir o trajeto.
Começamos a descida lentamente e mesmo assim o Ri mal
conseguia acompanhar. Reduzimos e nada. Os meninos já não me deixavam ficar ao
lado dele, pois diziam que o ritmo piorava porque ficávamos conversando demais.
Um pouco mais para baixo o Di vira para o Gu e fala para
continuarmos na frente, para aproveitarmos para limpar os pés e descansar.
Seguimos lentamente, parando várias vezes para esperar. Apesar de já não mais
vê-los, achávamos que o tempo de espera a cada parada seria suficiente para não
distanciarmos tanto. Em uma das paradas, quase sendo engolidos por pernilongos,
uma equipe passa com o recado de que nossa outra dupla continuava vindo, porém
devagar, muito devagar. Disseram para não nos preocuparmos que estava tudo bem.
Com o recado, seguimos o combinado e continuamos nossa lenta descida até
finalmente chegarmos a uma casa. A trilha de lama estava muito pisada pelas
equipes que já tinham passado, então não nos preocupamos com possíveis
perdidas.
Dois homens pintavam uma casa em reforma. Pedi para nos
abrigarmos na varanda e eles prontamente nos receberam com café fresco e banana
da terra cozida. Com o Gu dormindo e recusando o café, tomei os dois copos
gigantes e comi só parte da banana, guardando o resto para os meninos. Dormimos
ao som e notícias locais, coisas assustadoras tanto pelas músicas quanto pelo
noticiário homicida. Mesmo assim, insuficientes para atrapalhar nosso sono
pesado.
Acordamos e nada dos meninos. Revezamos a vigília da
entrada da varanda, com medo deles passarem direto. Uma hora e nada, duas horas
e nada, três horas e o desespero batendo. Debatemos a situação, decidimos
voltar apesar dos pés explodindo de dor. Os pés do Gu estavam em carne viva e
as unhas infeccionadas. Voltar poderia trazer mais um problema, pois ao invés
de um seriam dois que talvez precisassem ser resgatados. Calculamos nosso tempo
de decida, fizemos uma regra de 3 e chegamos a conclusão de que eles levariam
pouco mais de quatro horas para descer.
Em meio ao debate, eis que chega um motoqueiro, vestido
com a camisa da organização. Anderson era o nome dele. Ele olha pra mim e diz:
“Equipe 10, seus apoios estão desesperados esperando vocês. Que alegria
encontrar…”. Acabei interrompendo a comemoração soltando que dois ainda estavam
na trilha, sendo que um estava com os pés destruídos. Ele arregalou os olhos e
para aumentar ainda mais minha agonia ainda disse: “Pra piorar o rádio não
funciona nessa região. Fui eu que levei a organização nessa trilha e o rádio
não funciona por aqui”. Ahh que beleza! Equipamento obrigatório que não
funciona, era tudo o que precisava ouvir.
Pedi para que voltasse para a cidade e pedisse para que
nossos apoios viessem nos encontrar. O Thiago estava acostumado a resgatar
equipes perdidas em provas de aventura. Não era o caso, mas ele poderia
facilmente chegar até os meninos e, se fosse preciso, poderia carregar o Ri. Em
pouco tempo, o rapaz da organização estava de volta, com os apoios assustados,
pois ele erroneamente havia informado que um dos atletas estava com hipotermia
e outro não ia nem pra frente nem pra trás. Hipotermia na Bahia? Fala sério!
No meio da confusão, o Di aparece dizendo que o Ri estava
logo atrás e que eles tinham sofrido muito com a descida. Fui ao encontro do
nosso companheiro e por incrível que pareça ele estava sorrindo. Uma sensação
de alívio indescritível nessa hora. Peguei a mochila dele e conversamos. Sem
acreditar ouvi da boca dele: “Vamos continuar?” Respondi que dependia dele e
seria ele quem iria decidir. Resposta imediata: “Vamos continuar. Só preciso
limpar meus pés”.
Superação, determinação e talvez um pouco de insanidade, o fato é que com os pés limpos, seguimos para os 10 km de estrada que ainda faltavam para chegar à cidade.
Calor humano
Um passo de cada vez e assim continuamos rumo à Guaratinga. Para reativar ainda mais os ânimos, o maridão e o Carcaça – da equipe Ekos, que infelizmente precisaram parar a prova – nos encontraram nesse trecho e nos fizeram companhia até a cidade. Com as conversas renovadas e histórias parcialmente contadas pudemos completar aquele fatídico trecho.
Após pouco mais de 26 horas totalmente sem dar notícias, voltamos à civilização. Na cidade de Guaratinga fomos recebidos como heróis, com direito a foguetório organizado pelo staff Anderson, aplausos, autógrafos e muitas fotos e filmagens. Outra cena marcante aconteceu nesta cidade, quando com um bebê recém-nascido no colo, uma moradora esticou os braços para o Gu e pediu para que ele segurasse a criança a assim ela pudesse fotografar a criança. Todo sujo ele hesitou, até que a mãe novamente pediu por favor, dizendo que no futuro iria mostrar para a filha que o Ecomotion um dia havia passado por ali.
Recepção extremamente calorosa e alívio para aqueles que buscavam notícias nossas.
Cantoria na bike
Com o corte, a bike de 100 km foi reduzida para pouco mais de 60km, dos quais a metade em asfalto. Recordei de alguns acidentes de provas passadas, em que pessoas dormiam sobre as bicicletas, sem controle algum do sono e muito menos dos movimentos. Descidas com vento na cara poderiam facilmente nos relaxar e fazer com que perdêssemos a atenção.
Alertei a todos e pedi o máximo de concentração. Para ter
certeza de que todos se mantinham acordados, pedi para o Di puxar umas
cantorias, mas o gosto pela música sertaneja só dava mais vontade de dormir.
Sugeri algumas opções trash, bem ao estilo ‘fim de festa de formatura’. Ótimo!
Foi o suficiente para todos entrarem na brincadeira.
O repertório já estava acabando, quando terminamos o
trecho de asfalto em Itabela.
Embora o Ri e o Di estivessem esgotados, consegui
convencê-los a continuar um pouco mais pela parte de terra. Até agora não sei
como não me xingaram ou me amarraram em alguma árvore pelo caminho. Talvez
porque o Marco estivesse na escolta obrigatória, já que o trecho tinha sido por
rodovia. Sorte minha!
Seguimos alguns quilômetros mais e novo pedido para parar.
Respondi para irmos só um pouco mais, pois tínhamos combinado de parar apenas
numa certa vila. A estratégia aqui era tentar rodar a quilometragem máxima,
incluindo os trechos mais íngremes, antes de pararmos para dormir, deixando o
mínimo de pedal final antes do longo remo de 54km. Tentava fazer com que
pudéssemos descansar ao máximo antes do remo.
Dormimos como bebês no local combinado, apesar dos cães
que insistiam em ladrar a noite toda. O relógio tocou, sentamos e o Ri solta um
“Galera, ainda estou cansado. Podemos dormir mais 10 minutos?”. A resposta
unânime foi um belo ‘NÃO’, então levantamos, calçamos as papetes e saímos para
o trecho final em estrada de terra, agora com pouco desnível.
Campeões
Em pouco tempo após o retorno ao pedal já estávamos
acordando apoios, staffs e equipes que dormiam na última transição antes da
chegada. Nossa alegria era tanta e aos gritos ‘SELVA!!!’ que muitos acharam que
éramos da equipe que disputava o Top 10. Não éramos, mas comemorávamos como se
estivéssemos talvez no Top 5.
Esclarecimentos à parte, conversamos com a Rose, da
Papaventuras/Família Extrema. Impressionante o alto-astral dessa mulher.
Cruzamos com a equipe a prova toda e em TODOS os momentos ela estava feliz,
sorrindo e nos incentivando. No bate-papo, ela nos contou que a Oskalunga tinha
sido a única equipe sem corte a entrar na água. Traduzindo, a equipe que
praticamente tinha abandonado a prova no primeiro dia, que continuou apenas por
incentivo dos próprios apoios e com a condição de apenas passear e que havia
dividido a água da sorte com nossa humilde equipe era a grande campeã do
Ecomotion 2011.
Última
transição
Com o corte, só poderíamos iniciar nosso último trecho da prova após às 9h30. Aproveitamos as horas livres para confraternizar com nossos apoios, agora reforçado com o Má e o Carcaça. Para nossa alegria, um belo banquete foi servido, um prato gigante de miojo, temperado com salsichas em conserva, palmito, azeitona e azeite. Hummm, delícia!!! Sucos, doces e outras guloseimas completaram nosso café da manhã antes de mais uma soneca chuvosa, mas agora sob a tenda-spa emprestada pelo João, da Aksa.
Canoagem
O acesso ao rio se dava por uma estreita e escorregadia trilha. Como o Ri mal conseguia apoiar os pés no plano, o Thiaguinho resolveu ajudar carregando-o nas costas na descida para o rio. Apesar da boa vontade, milésimos de segundo separaram o “Hum, Tá bom isso!!!” do Ri do escorregão certo do dois. Apesar do mix de risos e gemidos, ninguém se machucou.
Entramos na água já sob Sol forte, em ritmo constante, porém confortável. Afinal, seriam 54km de canoagem, que precisariam ser bem administradas devido ao calor intenso e cansaço evidente. O fluxo do rio ajudava nossa progressão, mas a cadeirinha do barco escorregava, o que acabou incomodando o Ri. Ele e o Diogo pararam de remar para ajustar a amarração, enquanto nós continuamos ritmados.
Poucos minuto, depois, ouvimos gritos. Olhamos, tentamos entender o que acontecia e a única frase compreendida foi “Volta, Volta, Volta!”. Voltamos. Remamos contra a forte correnteza do rio até alcançá-los e já questionando aos gritos “O que aconteceu?!”. Ao ouvir a resposta pensei “e agora?” e depois “mato o Ricardo agora ou depois?”. O Ricardo havia perdido o remo.
Risos, gargalhadas, muitas gargalhadas dei quando contaram que ele só percebeu que o remo havia caído na água depois de ajustar a cadeirinha e só depois de se alimentar. A cara de Gato de Botas que ele fez é indescritível. O que fazer numa hora destas? Rir, lógico.
Com o meu remo emprestado, os dois subiram o rio mais um pouco, enquanto o Gu e eu agarrávamos algumas folhagens da margem para esperar por eles e ao mesmo tempo observar se o remo descia com a correnteza. Perdemos alguns minutos, mas logo eles estavam de volta com o remo fujão. Ufa!!!
Seguimos nossa longa jornada aquática, com a correnteza favorável se reduzindo a cada quilômetro enquanto entrávamos em áreas alagadas. Bicicletas amarradas dentro de canoas; gados presos em espécies de gaiolas suspensas; famílias aproveitando a sombra debaixo das muitas palafitas enquanto a maré estava baixa; e outras aproveitando a mesma maré para se deslocar pela pouca faixa de terra que emergia da água. Cenas de Brasil!
Chegada
Após 6h30 de canoagem, finalmente avistamos nossos apoios à margem do rio, bem próximos à balsa. Muitas vozes de incentivo, inclusive dos muitos desconhecidos que se deslocavam para Arraial D’Ajuda. Remamos os metros finais empolgados pelo som do microfone do Jeff, que anunciava nossa chegada.
Apesar da nossa alegria, faltavam alguns metros mais. A organização nos obrigava passar direto pela chegada, para deixarmos os barcos mais próximos do caminhão de transporte. Fomos forçados a deixar a comemoração para trás só para poupar trabalho do organizador. Sem problema!!!
Depois de tudo o que já tínhamos passado ao longo de uma semana, aquilo não era nada. Praticamente arrastar o Ri de volta para o pórtico pelas ruas de Porto Seguro levou mais de 30 minutos, mas isso não importava.
No ritmo baiano, cruzamos o pórtico por volta das 16h30 de sexta-feira. Cinco dias depois da largada em alto-mar em Prado, encerramos nosso desafio, felizes e realizados.
Ah! E no pórtico de chegada ainda pagamos as 10 flexões Selva.